A ampla defesa e contraditória no processo administrativo ambiental- apuração de infrações ao meio ambiente.
Por Carlos Eduardo de Morais[1]
O constitucionalismo, como movimento de limitação dos poderes estatais, está intrinsecamente ligado ao surgimento dos direitos fundamentais A Magna Carta[2], assinada em junho de 1215 entre os barões da Inglaterra medieval e o Rei João Sem-Terra[3], foi um dos documentos mais importantes deste período. Nos termos do disposto na Magna Carta, o amplo direito à justiça estaria, a partir de então, garantido, conforme expressão latina do art. 40: “Nulli vendemus, nulli negabimus aut differemus rectum aut justiciam”, que em tradução livre significa “A ninguém venderemos, a ninguém recusaremos ou atrasaremos, direito ou justiça”.
O livre acesso ao contraditório e ampla defesa está consubstanciado no rol de direitos e garantias fundamentais do texto constitucional (art. 5º), como mecanismo inerente a qualquer processo seja na esfera administrativa ou judicial:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […] LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (BRASIL, 1988)
A ampla defesa, conhecido como princípio da amplitude de defesa, traduz-se pela possibilidade do exercício do direito de contraditar ou oferecer provas, alegar fatos, interpor recurso contra decisões, conforme explanação de João Batista Lopes[4]: “ao referir-se à ampla defesa, pretende a Constituição consagrar a garantia da defesa pertinente, necessária e adequada, já que o abuso de direito é vedado pelo sistema jurídico”
Princípio do contraditório
O princípio do contraditório, do latim, audiatur et altera pars, que significa “ouça também a outra parte”, trata-se de princípio que garante a igualdade entre as partes à medida que que oportuniza o direito de resposta pelos meios processuais a qualquer acusação.
O princípio do devido processo legal[5] ratifica-se como legítima e importante garantia consagrada na constituinte de 1988, postulando-se no estado democrático de direito por diversos instrumentais, dentre estes a ampla defesa e o contraditório. Neste diapasão, o constitucionalista José Afonso da Silva leciona[6]:
O princípio do devido processo legal entra agora no Direito Constitucional positivo com um enunciado que vem da Magna Carta inglesa: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (artigo 5º, LIV). Combinado com o direito de acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV) e o contraditório e a plenitude da defesa (artigo 5º, LV), fecha-se o ciclo das garantias processuais. Garante-se o processo, e quando se fala em “processo”, e não em simples procedimento, alude-se, sem dúvida, a formas instrumentais adequadas, a fim de que a prestação jurisdicional, quando entregue pelo Estado, dê a cada um o que é seu, segundo os imperativos da ordem jurídicas. E isso envolve a garantia do contraditório, a plenitude do direito de defesa, a isonomia processual e a bilateralidade dos atos procedimentais, conforme autoriza a lição de Frederico Marques.
Considerando esta análise, convém ressaltar o que diz a Lei nº 9.784, de 29-01-1999, que regula os processos administrativos, veja-se:
Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. (BRASIL, 1999)
No rito dos procedimentos administrativos, cumpre destacar que todo processo deve perfazer o seguinte caminho: (I) a instauração do procedimento pelo auto de infração; (II) defesa técnica; (III) coleta de provas, se for o caso; (IV) decisão administrativa; e (V), e eventualmente, o recurso.
Considerando a sistemática processual em sua amplitude, ressalta-se a Lei 9.605, de 12-02-1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. O referido dispositivo atribui a Administração Pública a competência para apuração das infrações ambientais em âmbito processual administrativo, nos termos de seus §§ 3º e 4º, a saber:
§3º A autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de corresponsabilidade. § 4º As infrações ambientais são apuradas em processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório, observadas as disposições desta Lei. (BRASIL. 1998)
Sob a vigência do Decreto nº 6.514, de 22-07-2008, o processo administrativo federal, para apuração das violações ao meio ambiente assumiu características específicas.
Conforme estabelecido neste dispositivo, após a constatação de infração, a autoridade deve lavrar o auto de infração contendo os requisitos do art. 4º, esta, deverá ser confirmada por autoridade julgadora, abrindo, por consequência, prazo para oferecimento de defesa. O referido Decreto, faculta ao autuado, no exercício de sua defesa todas as provas dos fatos alegados, senão vejamos: “Ao autuado caberá a prova dos fatos que tenha alegado, sem prejuízo do dever atribuído à autoridade julgadora para instrução do processo”.
Acerca do que prescreve o artigo 95 deste decreto, o processo administrativo aduz estes princípios. O art. 97[7], estabelece que o auto de infração deverá ser lavrado com a descrição clara e objetiva das infrações administrativas averiguadas e rol dos respectivos dispositivos infringidos.
A desconexão entre adequação da infração e definição do dano ambiental
A desconexão entre adequação da infração e a definição do dano ambiental obsta o claro conhecimento do fato imputado bem como impossibilita o exercício da ampla defesa e do contraditório tornando impugnável o ato infracional.
Todavia, a despeito de indicação explicitada, nota-se na prática, diversos procedimentos que contrariam estes princípios, derivando em detrimento da defesa ao autuado, conforme análise da Relatora Mairan Maia do Tribunal Regional Federal – TRF da 3ª Região:
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região – TRF3, por sua vez, julgou demanda em que o agente do IBAMA, ao descrever a violação cometida, enunciou nos autos de infração, como causa que o conduziu à aplicação das medidas punitivas, o desmatamento de “floresta nativa de domínio de mata atlântica”. Ocorre, contudo, que após análise das provas periciais, restou demonstrado que a área estava inserida no bioma cerrado. Aplicando a teoria dos motivos determinantes[8], a Desembargadora Federal Mairan Maia entendeu pela nulidade dos autos de infração aplicados, já que, em suas palavras: “são inválidos os atos administrativos lavrados por vício quanto à motivação”. – TRF3 – Apelação Cível 1404325 – 6ª Turma – Relatora Mairan Maia. Julgado em 27/01/2011.[9]
Na aplicação das sanções, caso sejam aplicáveis, deverá ser fundamentado a decisão, considerando as provas ou argumentos apresentados pelo infrator na defesa prévia, será considerado a quebra do princípio constitucional da ampla defesa, assim sendo o Processo Administrativo Ambiental passível de nulidade.
Esta nulidade pode ser exemplificada no exame do Ministro do Superior Tribunal de Justiça – STJ, Hamilton Carvalhido, na relatoria do Recurso Extraordinário 0216748-1:
ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO AMBIENTAL. ANULAÇÃO. DECISÃO [..]1.- O processo administrativo que culminou na imposição da multa por infração ambiental ao autor deve ser desconstituído, uma vez que, por não ter permitido a interposição de recurso administrativo, não ter mencionado fato de suma importância para a defesa do autuado e não ter apresentado o fundamento. f (extensão da área queimada)ático do ato decisório, contrariou os princípios da motivação, do contraditório e da ampla defesa. […]A insurgência especial está fundada na violação dos artigos 2º, 56 e 57 da Lei nº 9.784/99, 6º da Lei nº 8.005/90, 70, parágrafo 4º, e 71, inciso III, da Lei nº 9.605/98, cujos termos são os seguintes: Lei nº 9.784/99 “Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Art. 56. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de legalidade e de mérito. Art. 57. O recurso administrativo tramitará no máximo por três instâncias administrativas, salvo disposição legal diversa.” Lei nº 8.005/90 “Art. 6º O Presidente do Ibama baixará portaria disciplinando o procedimento administrativo para autuação, cobrança e inscrição na dívida ativa dos débitos a que se refere esta lei, assegurados o contraditório e o amplo direito de defesa.” Lei nº 9.605/98 “Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente. § 4º As infrações ambientais são apuradas em processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório, observadas as disposições desta Lei. Art. 71. O processo administrativo para apuração de infração ambiental deve observar os prazos seguintes máximos:III – vinte (…) dias para o infrator recorrer da decisão condenatória à instância superior do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, ou à Diretoria de Portos e Costas, do Ministério da Marinha, de acordo com o tipo de autuação” Aduz o recorrente, ainda, violação dos artigos 1º, 3º e 12,parágrafo 3º, da Instrução Normativa nº 08/2003. E teriam sido violados, porque: ” O Presidente do IBAMA, o limitar o acesso dos administrados (…) Da ausência do contraditório e da ampla defesa. Requer o autor a anulação do auto de infração nº 164405, sob o fundamento de que não houve obediência aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Penso que tal pretensão reclama guarida pelo Poder Judiciário. Publique-se. Intimem-se. Brasília, 30 de abril de 2010. Ministro Hamilton Carvalhido, Relatorcaput, – RECURSO ESPECIAL Nº 1.165.388 – RS (2009/0216748-1). Relator: Ministro Hamilton Carvalhido. (2010).
Posto isto, destaca-se a obrigação do Estado de se cumprir os requisitos principiológicos e postulatórios do processo administrativo na seara ambiental, uma vez que o exercício do contraditório e ampla defesa avaliza a própria existência do Estado Democrático de Direito.
Considerações Finais
Por esta razão, cabe ao judiciário, a remediação de atos falhos e omissos da Administração Pública nos processos administrativos pelo princípio da inafastabilidade da função jurisdicional, para tutelar esses direitos fundamentais.
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[1] Carlos é graduando no curso de Direito da Faculdade Promove e Assistente Jurídico do departamento de Risco de Legal da empresa Verde Ghaia.
[2] Em latim, Magna Charta Libertatum, seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae, a qual traduz-se por Grande Carta das liberdades, ou concórdia entre o rei João e os barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês.
[3] “João I, também conhecido por João Sem Terra (Lackland em inglês) (24 de dezembro 1166 – 18 de Outubro, 1216) foi Rei de Inglaterra, Duque da Normandia e Duque da Aquitânia de 1199 a 1216. Com a morte de Ricardo I, João sem Terra assumiu o trono. O apelido “sem Terra” vinha da pouca probabilidade de João receber herança, já que era o quinto entre os filhos homens. Ironicamente, ele herdou muitas terras. Mas junto com o território conquistado pelo pai vieram as enormes dívidas de guerra deixadas pelo irmão. O reinado de João I foi um período marcado por derrotas e excessos. Essa terrível sucessão de eventos, e a cobrança de impostos abusivos, minaram a credibilidade do monarca perante o povo. Seus barões tentaram expor o descontentamento ao rei, mas após serem repetidas vezes ignorados em suas tentativas de diálogo, os barões se revoltaram e, em maio de 1215, tomaram Londres e renunciaram à sua lealdade à coroa inglesa. Após intensas disputas e negociações, o rei concordou em se reunir com os barões e, em 15 de junho de 1215, selou um documento denominado Magna Charta Libertatum, seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni anglia que em sua versão final continha 63 artigos. ” – Fonte: A História dos Séculos. “A Magna Carta – 800 anos de luta pela liberdade”. Disponível em: <https://ahistoriadoseculo.org/2015/06/09/a-magna-carta-800-anos-de-luta-pela-liberdade/>. Acesso em 08/2014
[4] LOPES, João Batista. Curso de direito processual civil. São Paulo: Editora Atlas, 2005, v. 1, p. 44.
[5] É o princípio que assegura a todos o direito a um processo com todas as etapas previstas em lei e todas as garantias constitucionais. Se no processo não forem observadas as regras básicas, ele se tornará nulo. É considerado o mais importante dos princípios constitucionais, pois dele derivam todos os demais. Ele reflete em uma dupla proteção ao sujeito, no âmbito material e formal, de forma que o indivíduo receba instrumentos para atuar com paridade de condições com o Estado-persecutor. (BARROSO, Carlos Eduardo Ferraz de Mattos. Sinopses Jurídicas. Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 8ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2008).
[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993, p. 378.
[7] “Art. 97. O auto de infração deverá ser lavrado em impresso próprio, com a identificação do autuado, a descrição clara e objetiva das infrações administrativas constatadas e a indicação dos respectivos dispositivos legais e regulamentares infringidos, não devendo conter emendas ou rasuras que comprometam sua validade. ” (BRASIL, 2008)
[8] Conforme Celso Antônio Bandeira de Mello, o motivo é “o pressuposto de fato que autoriza ou exige a prática do ato. É, pois, a situação do mundo empírico que deve ser tomada em conta para a prática do ato” (2002, pp. 350/351).
[9] Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=da796dcc49ab9fc5>
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